sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Sobre a DEPRESSÃO..,












 O Depressivo olha à sua volta e lista tudo o que ele tem: família, amigos, trabalho e lazer. Não vê sentido em nada. Não sente nenhuma motivação em dar seguimento às atividades de sua rotina. Prefere aquele pontinho de luz na escuridão do quarto. Pensa no que lhe daria prazer e não encontra nada. É um estranho no mundo. Não vê nenhum sentido nos lugares que poderia visitar, nas coisas que poderia comprar e nos restaurantes que poderia frequentar. Não sente o menor impulso para passeios e coisas. É desafectado de tudo. Só consegue desenvolver alguma atividade de forma robotizada ou sob o efeito de muitos antidepressivos. A depressão é uma síndrome da falta de prazer na vida. É uma psicopatologia da alegria de viver. O olhar desesperado do depressivo envolve uma dificuldade crônica em estabelecer laços com o mundo. Ele não sabe mais a que veio. Não sabemos exatamente qual é a causa desta baixa da vontade de viver. O que sabemos é que as mudanças sociais das últimas décadas, tendem a tornar as pessoas ainda mais vulneráveis à depressão. A alegria de viver passa pela disponibilidade das pessoas em amar de forma gratuita, sem a pressão das coisas materiais e do tempo. Isto hoje é coisa rara. Não creio que a felicidade possa ser conquistada com a ingestão de comprimidos produzidos artificialmente. Teremos que nos adaptar aos novos tempos e sem a alegria intensa, própria de nós brasileiros. Em pouco tempo veremos sentido em passar a maior parte do tempo, em frente à TV, consumindo pacotes de batata frita com aqueles copões enormes de refrigerante.



 FONTE: Evaristo Magalhães – Psicanalista

sábado, 19 de julho de 2014

A MORTE COMO CONSELHEIRA: Rubem Alves














Lembra-te, antes que cheguem os 
maus dias, e se rompa o fio de prata, 
e se despedace o COPO de ouro, e 
se quebre o cântaro junto à fonte, 
e se desfaça a roda junto ao poço…
Eclesiastes 12, 1-8

A vida está cheia de rituais para exorcizar a Morte. Agora, quando escrevo, dia 3 de janeiro de 1991, acabamos de passar por dois deles. É claro que não lhes damos este nome, pois o seu sucesso depende de que o Nome Terrível não seja ouvido. Para isto se faz uma barulheira enorme de sinos, fogos de artifício, danças, risos, muita comida, e alegria engarrafada… E tudo isso só para que a voz Dela não seja ouvida… Natal não é isto? Não existe uma tristeza solta no ar? O esforço desesperado de repetir um passado, fazer com que ele aconteça de novo? Encontrei, certa vez, numa loja nos Estados Unidos, um pacotinho de ervas e temperos num saquinho de plástico com o nome: “perfumes de Natal”. Tem de ser aqueles cheiros antigos, de infância. As músicas novas não servem, é preciso que as mesmas dos outros tempos sejam cantadas de novo. E que haja o mesmo rebuliço, os mesmos bolos, as mesmas frutas. Prepara-se a repetição do passado, para se ter a ilusão de que o tempo não passou. Melhor o incômodo da correria e da ressaca do que a dor de ouvir o que Ela está silenciosamente dizendo: “É, mas o tempo passou. Não pode ser recuperado. Você está passando…” Pensar dói muito. O Natal dói muito... E saímos da depressão da perda por meio de um outro ritual. Tolice imaginar que o tempo passou. Que nada. É um novo tempo que vem. Há muito tempo à espera. “Feliz Ano Novo!” E, no entanto, é tudo mentira.

Certo está o poeta:

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz o que nem sequer sonhei; o que só agora vejo que deveria ter feito, o que só agora claramente vejo que deveria ter sido isto é que é morto para além de todos os Deuses…

Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei.

Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?

Esses, sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.

Enterro-os no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos… (Álvaro de Campos, Poesias, “Na noite terrível…”)

Não, não, a Morte não é algo que nos espera no fim. É companheira silenciosa que fala com voz branda, sem querer nos aterrorizar, dizendo sempre a verdade e nos convidando à sabedoria de viver.

O que ela diz? Coisas assim:

“Bonito o crepúsculo, não? Veja as cores, como são lindas e efêmeras… Não se repetirão jamais. E não há formas de segura-las. Inútil tirar uma foto. A foto será sempre a memória de algo que deixou de ser… E esta tristeza que a beleza dá? Talvez porque você seja como o crepúsculo…. É preciso viver o instante. Não é possível colocar a vida numa caderneta de poupança…”

“Você sabe que horas são? Está ficando frio… E as cores do outono? Parece que o inverno está chegando…”

“O que é que você está esperando? Como se a vida ainda não tivesse começado… Como se você estivesse à espera de algum evento que vai marcar o início real da sua vida: formar, casar, criar os filhos, separar da mulher ou do marido, descobrir o verdadeiro amor, ficar rico, aposentar… Como se os seus instantes presentes fossem provisórios, preparatórios. Mas eles são a única coisa que existe…”

“E esta música que você está dançando? É de sua autoria? Ou é um Outro que toca, e você dança? Quem é este Outro? Lembre-se do que disse o poeta ‘Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim’. Mas, se você é isto, o intervalo, você já morreu… Acorde! Ressuscite!”

A branda fala da morte não nos aterroriza por nos falar da Morte. Ela nos aterroriza por nos falar da Vida. Na verdade, a Morte nunca fala sobre si mesma. Ela sempre nos fala sobre aquilo que estamos fazendo com a própria Vida, as perdas, os sonhos que não sonhamos, os riscos que não tomamos (por medo), os suicídios lentos que perpetramos.

“Lembra-te, antes que se rompa o fio de prata e se despedace o corpo de outro”, e que seja tarde demais.

Uma das canções mais belas do Chico eu nunca ouvi tocada no rádio. Tenho perguntado, e pouca gente conhece. Desconfio. É porque ela é a mansa sabedoria da Morte, que ninguém quer ouvir. Diz assim: “O velho sem conselhos, de joelhos, de partida, carrega com certeza todo o peso de sua vida. Então eu lhe pergunto sobre o amor… A vida inteira, diz que se guardou do carnaval, da brincadeira que ele não brincou… E agora, velho, o que é que eu digo ao povo? O que é que tem de novo pra deixar? Nada. Só a caminhada, longa, pra nenhum lugar… O velho, de partida, deixa a vida sem saudades, sem dívida, sem saldo, sem rival ou amizade. Então eu lhe pergunto pelo amor… Ele me diz que sempre se escondeu não se comprometeu, nem nunca se entregou… E agora, velho, que é que eu digo ao povo? O que é que tem de novo pra deixar? Nada. Eu vejo a triste estrada aonde um dia eu vou parar. O velho vai-se agora, vai-se embora sem bagagem. Não sabe pra que veio, foi passeio, foi PASSAGEM. Então eu lhe pergunto pelo amor… Ele me é franco. Mostra um verso manco dum caderno em branco que já se fechou. E agora, velho, o que é que eu digo ao povo? O que é que tem de novo pra deixar? Não. Foi tudo escrito em vão… E eu lhe peço perdão mas não vou lastimar”… Parece até que o Chico e o Jorge Luis Borges entraram de acordo, pois este escreveu coisa muito parecida: “Instantes: Se eu puder viver novamente a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros. Não tentaria ser perfeito. Relaxaria mais. Seria mais tolo ainda do que tenho sido. Na verdade, bem poucas coisas levaria a sério. Seria até menos higiênico. Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios. Iria para lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos sopa. Teria mais problemas reais e menos problemas imaginários. Eu fui uma desta pessoas que viveu sensata e produtivamente cada minuto de sua vida. Eu era uma destas pessoas que nunca ia a parte alguma sem um termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas. Se voltasse a viver, viajaria mais leve. Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono. Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças, se tivesse outra vez uma vida pela frente. Mas, já viram, tenho 85 anos e sei que estou morrendo…”

É! Embora a gente não saiba, a Morte fala com a voz do poeta. Porque é nele que as duas, a Vida e a Morte encontram-se reconciliadas, conversam uma com a outra, e desta conversa surge a Beleza. Agora, o que a Beleza não suporta é o falatório, a correria… Ela nos convida a contemplar a nossa própria verdade. E o que ela nos diz é simplesmente isto: “Veja a vida. Não há tempo pra perder. É preciso viver agora! Não se pode deixar o amor para depois. CARPE DIEM!”

Foi esta a primeira lição do professor de literatura do filme A sociedade dos poetas mortos. CARPE DIEM: agarre o dia! E o efeito de tal revelação poética, nascida da reconciliação da Vida com a Morte, é uma incontrolável explosão de liberdade. É só isto que nos dá coragem para arrebentar a mortalha com que os desejos dos outros nos enrolam e mumificam.

Tive um amigo, Hans Hoekendijk, um holandês que esteve prisioneiro num campo de concentração alemão. Contou-me de sua experiência com a morte. A guerra já chegava ao fim, e os prisioneiros acompanhavam num rádio clandestino o avanço de tropas aliadas e já faziam o cálculo dos dias que os separavam da liberdade. Até que o comandante da prisão reuniu a todos no pátio e informou que, antes da libertação, todos seriam enforcados. “Foi um grito de lamentação e horror… seguido da mais extraordinária experiência de liberdade que jamais tive em minha vida”, ele disse. “Se eu morrer dentro de dois dias, então nada mais importa. Não há sentido em me guardar, não há sentido em ser prudente. Não preciso pretender ser outra coisa do que sou. Posso viver a minha verdade, pois nada pode me acontecer. Não preciso de máscaras. Tenho a permissão para a honestidade total. Posso ir ao guarda nazista, que sempre me aterrorizou, e dizer a ele tudo o que sinto e penso…

Que é que ele pode me fazer? Posso ir até aquela mulher que sempre amei, mas de quem nunca me aproximei (afinal, ela estava com o marido, e naqueles tempos isto era levado em consideração…) e pedir licença ao marido para confessar os sentimentos… Posso dizer tudo o que sinto, mas que nunca me atrevi a dizer, por medo”. E me contou dessa experiência fantástica de liberdade e verdade que se tem quando se está pendurado sobre o abismo. A Morte tem o poder de colocar todas as coisas em seus devidos lugares. Longe do seu olhar, somos prisioneiros do olhar dos outros, e caímos na armadilha de seus desejos. Deixamos de ser o que somos para sermos o que eles desejam que sejamos. Diante da Morte, tudo se torna repentinamente puro. Não há lugar pra mentiras. E a gente se defronta então, com a Verdade, aquilo que realmente importa. Para ter acesso a nossa verdade, para ouvir de novo a voz do desejo mais profundo, é preciso tornar-se um discípulo da Morte. Pois ela nos dá lições de vida, se acolhemos como amiga. ”A morte é nossa eterna companheira” – dizia Don Juan, o bruxo. “Ela se encontra sempre a nossa esquerda, ao alcance do braço”. Ela nos olha sempre até o dia que nos toca. Como é possível alguém se sentir importante, sabendo que a Morte o comtempla? O que você deve fazer ao se sentir impaciente com alguma coisa, é voltar-se para sua esquerda e pedir que a sua Morte o aconselhe. Estamos cheios de lixo! É a Morte é a única conselheira que temos. Sempre que você sentir, como acontece sempre, que tudo está indo de mal a pior, e que você se encontra a ponto de aniquilado, volte-se para sua Morte e lhe pergunte se isso é verdade. Sua Morte lhe dirá que você está errado, que nada realmente importa, fora do seu toque. Ela lhe dirá “ainda não te toquei”. Alguém tem que mudar e depressa. Alguém tem que aprender que a Morte é caçadora e que ela se encontra a nossa esquerda. Alguém tem que pedir o conselho da Morte e abandonar a maldita mesquinharia que pertence aos homens que vivem as suas vidas como se a Morte nunca fosse bater no seu ombro.

Houve um tempo em que o nosso poder perante a morte era muito pequeno. E por isso os homens e mulheres dedicavam-se a ouvir a sua voz e podiam tornar-se sábios na arte de viver. Hoje, o nosso poder aumentou, a Morte foi definida como inimiga a ser derrotada, fomos possuídos pela fantasia onipotente de que nos livramos de seu toque. Com isso, nós nos tornamos surdos às lições que ela pode nos ensinar. E nos encontramos diante do perigo de que, quanto mais poderosos formos diante ela (inutilmente, porque só podemos adiar.) mais tolos nos tornamos na arte de viver. E, quando isso acontece, Morte que podia ser conselheira sábia, transforma-se em inimiga que nos devora por detrás. Acho que para recuperarmos um pouco a sabedoria de viver seria preciso que nos tornássemos discípulos e não inimigos da Morte. Mas para isso seria preciso abrir espaço em nossas vidas para ouvir a sua voz. Seria preciso que voltássemos a ouvir os poetas...

Referência
ALVES, Rubem. A morte como conselheira. In: CASSORLA, Roosevelt M. S. (Coord). Da morte. Campinas: Papirus, 1991.

FONTE: Espaço cuidar

quinta-feira, 26 de junho de 2014

'Dacnomania - Entenda porque o Suárez mordeu o italiano'







Colunista explica o que aconteceu durante a partida pela Copa do Mundo.

* Por Jordan Campos


Hoje, na Copa do Mundo todos estão comentando um lance curioso: o atacante uruguaio Luis Suárez mordeu seu adversário italiano em pleno momento de jogo. Logo após o ocorrido veio à tona a informação de que este é o terceiro episódio público em que o atacante faz a mesma coisa. Muitos estão o chamando de louco, desequilibrado, doente mental – mas que tal parar um pouco e tentar entender o que está por detrás deste sintoma. Sim – isso é um sintoma de um ou alguns conflitos não assimilados, estes conflitos são a “doença”, e o ato de morder, apenas o sintoma desta “doença-conflito”.
Suárez me fez lembrar a clássica definição da síndrome de morder a si ou a outros. Isto se chama Dacnomania. Com total certeza o Suárez faz isso desde criança sempre quando se sente sob alta pressão e stress, e a mordida é a forma encontrada por ele para drenar esta adrenergia em seu sangue e cérebro. È uma forma de o corpo fazer interromper o fluxo de adrenalina que pode causar prejuízo ao corpo. Assim, quando ele morde, passa a liberar acetilcolina, que por sua vez, cancela a ação maléfica do stress causado pela adrenalina. E pasmem – não é racional esta atitude dele. No momento da adrenergia (muita adrenalina circulante), o atleta fez isso sem pensar nas consequências. A polêmica aqui então é: se ele não sabia o que fazia naqueles segundos, ele deve ser punido?

Vou entrar num assunto aqui para ser mais claro. Temos em nosso cérebro dois tipos diferentes de funcionamento e depender do tipo de situação que estamos enfrentando e como nossas crenças traduzem isso. Temos assim, para ser didático, dois cérebros. O cérebro analítico e o cérebro reativo. O primeiro analisa, faz contas, pondera e então toma a decisão – digamos que indivíduos normais estejam nele quase que 98% de um dia. O outro cérebro, o reativo – é totalmente focado na resposta do que chamamos de sistema reptliano, sim nós temos uma parte do cérebro idêntica a dos répteis, e como eles, apenas reagimos. O cérebro reativo é chamado a funcionar quando estamos em risco, ou quando nossa CRENÇA pensa estar sob risco. Ele então anula a ação do analítico e entra em sistema de defesa realizando duas funções básicas – atacar ou fugir. Apenas estas duas opções o cérebro reativo pode decidir. E no momento em que o jogo estava e sob alta adrenalina, de repente o sistema operacional do Suárez entrou no modo “reativo”, e ele mordeu- atacou, pois na sua crença não poderia fugir (sair do campo, pedir para ser substituído).

Agora você deve me perguntar: “Ok, Jordan – mas porque ele mordeu? – Poderia ele ter tido outra reação? Chutar, xingar, se bater?” – “Por que escolheu MORDER?”

A “escolha” de morder não foi feita por ele, e sim pelo seu sistema reativo. A depender da criação e do modo de desenvolvimento de todos nós, do que nos sobrou ou faltou, podemos ter diferentes e bizarros modos de reatividade. Tal qual a criança que é abusada sexualmente pode responder em seu cérebro reativo com uma relação de dor, punição e humilhação para ter prazer no sexo... Eu gastaria horas aqui fazendo possíveis relações que explicam outras reações. O morder me faz lembrar das fases de desenvolvimento que Freud classificou. Freud usa o termo fixação para descrever o que ocorre quando uma pessoa não progride normalmente de uma fase para outra, mas permanece muito envolvida numa fase particular. Uma pessoa fixada numa determinada fase preferirá satisfazer suas necessidades de forma mais simples ou infantil, ao invés dos modos mais adultos que resultariam de um desenvolvimento normal. Uma das fases de aprendizado e desenvolvimento é a chamada Fase Oral.

Entenda: Desde o nascimento, necessidade e gratificação estão ambas concentradas predominantemente em volta dos lábios, língua e, um pouco mais tarde, nos dentes. A pulsão básica do bebê não é social ou interpessoal, é apenas receber alimento para atenuar as tensões de fome e sede. Enquanto é alimentada, a criança é também confortada, aninhada, acalentada e acariciada. No início, ela associa prazer e redução da tensão ao processo de alimentação. A boca é a primeira área do corpo que o bebê pode controlar; a maior parte da energia reativa disponível é direcionada ou focalizada nesta área. Conforme a criança cresce, outras áreas do corpo desenvolvem-se e tornam-se importantes regiões de gratificação. Entretanto, alguma energia é permanentemente fixada nos meios de gratificação oral. Em adultos, existem muitos hábitos orais bem desenvolvidos e um interesse contínuo em manter prazeres orais. Comer, chupar, morder, lamber ou beijar com estalo, são expressões físicas destes interesses. Pessoas que mordicam constantemente, fumantes e os que costumam comer demais podem ser pessoas parcialmente fixadas na fase oral, pessoas cuja maturação psicológica pode não ter se completado, como é o caso do Luiz Suárez. Ele deve ter passado por algum conflito não assimilado nesta fase de desenvolvimento e registrou a mordida como forma de sublimação do que lhe faltou. Pode ter sido sua relação com o seio da sua mãe, pode ter sido uma surra porque ele mordeu a caneta preferida do pai... E muitas hipóteses. Mas o drama do Suárez começou lá atrás, e precisamos aqui de uma Copa para nos fazer entender que ele precisa de ajuda. Ele reage com uma “fase oral tardia” ao stress.

Não confundamos este problema com a “Odaxelagnia” – que é a vontade de morder carinhosamente as pessoas. O que o Suárez tem se chama dacnomania. Não sei se a Fifa vai levar isso em consideração. Eu, sabendo disso tudo daria a ele uma punição educativa – condicionaria a continuidade de atleta dele a um acompanhamento psicológico visando resolver o conflito não resolvido de sua fase oral. Tirá-lo de um ou mais jogos não vai resolver nada. Pois não vai reeducar o que aconteceu lá atrás. Espero ter ajudado a entender algo importante. A informação nos liberta e faz nos compreender neste mundo. O julgamento vazio nos atrasa e faz de tudo um inferno sem fim.

FONTE: Prime Offer  / Jordan Campos é terapeuta transpessoal sistêmico, clínico, escritor, palestrante, conferencista internacional e músico.

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A mordida de Luis Suárez tem explicação?

domingo, 13 de abril de 2014

Depressão, álcool e vida íntima invadida. Veja os dramas de Ian Thorpe









A luta contra uma forte infecção que pode causar a perda dos movimentos do braço esquerdo está longe de ser a única batalha na carreira do polêmico pentacampeão olímpico Ian Torphe. A vida do australiano tem batalhas contra depressão, alcoolismo e até de questionamentos sobre sua sexualidade.

Há cerca de dois meses, o atleta de 31 anos deu entrada em uma clínica privada para  tratar de depressão depois de ser encontrado pela polícia local em estado de atordoamento pelo uso excessivo de medicamentos.
Os problemas psicológicos também foram os responsáveis pela aposentadoria precoce que teve em 2006, aos 24 anos, quando decidiu parar alegar estar desmotivado. Depois, veio à tona que a interrupção foi pelo uso excessivo de álcool e forte depressão.

Há pouco mais de um ano, ele lançou uma biografia em que revelava os problemas psicológicos que teve e que aventou a possibilidade de fazer algo pior. "Até pensei em lugares concretos ou um modo específico de cometer suicídio, mas sempre recuava ao perceber que era ridículo... Poderia ter cometido suicídio? Olhando para trás, acredito que não, mas existiram dias na minha vida que mesmo hoje me fazem tremer", escreveu.

Diz que usava álcool para poder ter boas noites de sono, até que isso virou um circulo vicioso. "Era a única maneira de poder dormir. Usava a bebida sozinho em meio à desgraça", disse na obra.

O nadador sempre foi alvo da imprensa de seu país quanto a questionamentos sobre sua sexualidade, o que sempre gerou desgaste no campeão, que visivelmente não gostava desse tipo de pergunta sobre sua vida particular.
Em 2009, o jornal "The Daily Telegraph" chegou a insinuar que ele tinha um caso com o desconhecido nadador brasileiro Daniel Mendes, ao relatar que os dois viajaram juntos de férias para o Brasil e que chegaram a morar na mesma casa, na Austrália, por três anos. O australiano teve que falar na época sobre isso e cita em sua biografia a chatice que era ter esse tipo de questão à sua sombra.

"Em várias ocasiões respondi questões sobre minha sexualidade com a mídia abertamente e honestamente... Desde então, minha situação não mudou", falou Thorpe, em uma das declarações sobre o assunto. "O que acho mais doloroso é ver as pessoas questionando minha integridade, e que isto seria algo com o qual me sentiria embaraçado ou quisesse esconder. Não quero ofender alguém ficando nervoso ou frustrado com isso."

Os ex-nadadores brasileiros Gustavo Borges e Fernando Scherer, o Xuxa, foram contemporâneos de Thorpe e chegaram a ter contato com o australiano em competições internacionais. Gustavo diz que nunca percebeu no atleta qualquer sinal de que pudesse ser um jovem infeliz ou com problemas. O que transparecia era seu espírito de competividade.

"Não, nada, nunca percebi. Ele parecia ser um cara determinado, que era pelos resultados e a maneira de competir. Não tinha nada que identificasse um perfil diferente não, ele parecia até ser um cara bem equilibrado,  com muita determinação, não lembro nada que tivesse chamado atenção, a não ser pela determinação dele de ganhar", falou Borges.

"Ele foi um cara que parou muito cedo e ganhou muita coisa jovem. É difícil falar, mas pode ser que ele tenha tido uma mistura de sentimentos muito jovem. Ele voltou tarde demais, era extremamente talentoso. Uma pena", continuou.

Xuxa diz que a maior lembrança que tem no contato é de que Thorpe era um cara extremamente humilde. E diz que a primeira lembrança que tem dos momentos que pôde presenciar era de sua disposição em tratar muito bem a todos. "Ele era um moleque atencioso e carismático. Lembro que ele atendia as crianças e fazia tudo de maneira profissional. Já vi muito campeão olímpico negar foto até pra atleta em Olimpíada, mas ele ficava lá atendendo as crianças. Ele sempre tratava muito bem todo mundo", falou.

"Não posso comentar sobre a vida pessoal dele, porque não conheço.  Mas quando se fala em medicamento e álcool é uma mistura que não dá uma combinação muito boa. Ele era recordista mundial com 15 anos e depois teve uma parada brusca. Imagino que possa ter perdido o chão. Não é fácil para um atleta parar de representar seu país, ouvir hino e fazer a sua nação feliz."
Ian vinha tentando retomar a carreira desde 2011, mas nunca conseguiu nenhum resultado expressivo. A TV australiana Network Seven divulgou na terça-feira que o cinco vezes campeão olímpico está internado na UTI de um hospital em Sydney, na Austrália, com uma infecção forte que pode causar a perda dos movimentos do braço esquerdo. Em entrevista à emissora britânica BBC, um porta-voz do nadador confirmou a hospitalização do australiano, mas negou que ele estivesse em cuidados intensivos.

A agência Reuters publicou entrevista com James Erskine, empresário de Thorpe, que afirmou que o caso é de risco à vida do australiano, mas considerou que este pode ser o fim da carreira do atleta. "De um ponto de vista competitivo, eu acho que ele não vai nadar competitivamente de novo", afirmou.

Falta de privacidade pode causar distúrbio
A psicóloga esportiva Maira Ruas ressaltou que não há como fazer qualquer avaliação do caso sem acompanha-lo de perto, mas viu algumas situações que podem ter sido determinantes para a depressão do ex-campeão olímpico.

A profissional entende que apenas o fato de ter ganhado tudo muito cedo pode não ter sido o diferencial, mas sim a exposição de sua vinda íntima e a sensação de ter que prestar contas à sociedade pelos padrões impostos.
"Era uma pessoa muito jovem, que estava em formação de sua fase adulta e tinha uma imensa responsabilidade na vida pessoal e não tinha privacidade na vida pessoal. Ela é julgada o tempo todo, seja para ganhar um título ou porque sai junto com fulano ou ciclano; então a questão humana dele não existe. Ele tem que produzir medalhas e responder questões para a sociedade, como a opção sexual, sela ela qual for. E isso pode render um esvaziamento interno e ser o fator desencadeador de depressão e alcoolismo", explicou.

"A depressão pode ter origem fisiológica ou social, com situações externas interferindo. O sucesso de forma prematura pode ter ajudado a desenvolver algumas características nele."

FONTE: José Ricardo Leite / Do UOL, em São Paulo

sábado, 12 de abril de 2014

Pesquisa revela alto índice de adoecimento mental entre docentes da UFPA








O Ex-Coordenador de Saúde do Trabalhador da UFPA, Médico, Professor e pesquisador, Jadir Campos, mestre na área médica e em educação e doutorando em Saúde do Trabalhador na Universidad Internacional Tres Fronteras, de Buenos Aires (Argentina), conversou com a Adufpa sobre a correlação entre as políticas para a educação superior pública no Brasil e o adoecimento docente. Em sua recente pesquisa de mestrado, intitulada “Trabalho Docente e Saúde: Tensões da Educação Superior”, que teve como objetivo discutir como as tensões das políticas para a Educação Superior pública estariam levando ao sofrimento e, em consequência, ao adoecimento docente, foram obtidos dados que sugerem que o fomento ao produtivismo e à competitividade, estimulados, sobretudo, pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), estão gerando adoecimento mental entre professores da UFPA. De acordo com a pesquisa, uma taxa de 14,13% dos pedidos de afastamento do trabalho de docentes da universidade, entre 2006 e 2010, esteve relacionado a problemas com a saúde mental.

Adufpa: De acordo com sua pesquisa, qual o quadro da UFPA quanto à saúde dos docentes?

Jadir: O quadro da UFPA praticamente se repete em todas as IFES brasileiras, porque isto é uma característica da própria política que o Ministério da Educação (MEC) vem adotando com relação ao trabalho docente. Esta pesquisa, iniciada através do mestrado em Educação, enfoca as políticas que foram criadas pelo governo federal para a educação superior e como elas, de alguma forma, comprometem o trabalho docente, que é intensificado e, na maioria das vezes, não é percebido pelo professor. Essa precarização do trabalho leva a uma situação de sofrimento, inicialmente, e se aquela pessoa que está passando por este sofrimento não tiver condições de superá-lo irá adoecer, pois o docente está submetido a uma série de exigências por conta da política de educação do MEC.

O adoecimento que estamos discutindo aqui é o mental, porém existem outras doenças inerentes à docência: Lesão por Esforço Repetitivo (LER) / Distúrbio Osteomuscular Relacionado ao Trabalho (DORT), lombalgia, problemas de pregas vocais com alterações da voz (disfonia), entre outros. Porém, neste trabalho, estou me referindo a um problema muito sério, que é o problema da saúde mental. Quando passei pela coordenadoria de saúde do trabalhador da UFPA, tivemos o trabalho de fazer esse levantamento, porque até então não existia absolutamente nada em termos de adoecimento do docente da UFPA, o que seria desvelado se o Projeto do Perfil Epidemiológico dos servidores da UFPA, elaborado por nós, tivesse sido implantado. Nós, modo geral, servidores da UFPA, não sabemos do que adoecemos nem do que morremos. Despertou-nos e inquietou-nos a quantidade de professores que nos procuravam com problemas de saúde mental. E, fizemos um levantamento de 2006 a 2010, levando em consideração aquele professor que nos procurava para se afastar, de alguma forma, em consequência de adoecimento mental. A surpresa – e eu não diria tão surpresa assim – foi a alta incidência de doenças mentais em professores da UFPA. O percentual de professores que pediram afastamento das atividades acadêmicas devido ao quadro de adoecimento mental, neste período, foi de 14,13%. Isto é alto, pois se compararmos com a doença que mais afasta os trabalhadores modo geral, na sociedade, que é a LER-DORT que é da ordem de 7,2%, chegamos a conclusão que no caso da UFPA o adoecimento mental afasta quase que o dobro do percentual que a LER – DORT afasta na sociedade em geral. Ou seja, o índice é muito alto e, por isso, preocupante.

Adufpa: Quais as possíveis causas do adoecimento docente?

Jadir: O que realmente está ocorrendo com o docente é que ele não está percebendo que está sendo “usado” e, digamos assim, imiscuído em um contexto político em que pela falta ou pela exiguidade de recursos financeiros - já que a universidade não arca com as necessidades materiais e de recursos para o desenvolvimento de pesquisas -, os dois órgãos mais importantes de fomento à pesquisa, a Capes e o CNPq, fazem uma triagem produtivista, tornando os docentes bodes expiatórios de um esquema perverso ao professor. Deste modo, o professor vai atrás deste fomento para conseguir recursos para sua pesquisa, para ter acesso às tecnologias, bolsistas etc. O professor que consegue isto acredita que o conseguiu por ser “gênio”, porém, o que não se percebe é que isso o coloca refém do produtivismo, da competição, e impõe a exigência de um grande número de publicações em revistas com qualis elevados. Contudo, eles acreditam que essa realidade faz parte do contexto da universidade e, esta situação é pior na Pós-Graduação, não percebem sua lógica real. Ele acha que “é gênio” por ter conseguido garantir todas suas publicações e aprovação de seus projetos, não percebe que isto na verdade é uma banalização, ou seja, em função dos exíguos recursos disponibilizados para a universidade, é feito uma triagem, e essa triagem é feita assim, dando maior possibilidade de pesquisa àquela pessoa que tem o que chamamos de ‘produtivismo consciente’, que publica muito, que tem seus artigos aprovados em periódicos qualis A, B. Os órgãos de fomento à pesquisa aproveitam-se disto e dizem que os professores tem plena consciência, mas não é bem assim. Quando você tem, de alguma forma, uma retribuição simbólica e remuneratória por algo que você faz, por exemplo: você desenvolve um trabalho, esse trabalho é aquilatado para que você receba um prêmio ou conquiste destaque, essa possibilidade de ter seu trabalho avaliado como o melhor, naturalmente gera no organismo substâncias que dão sensação de bem estar, neurotransmissores que provocam sensação de bem estar e nos “agiganta”, que nós chamamos de endorfinas. A pessoa que se vê envolvida neste contexto, com este “estímulo” à pesquisa e disponibilidade de recursos por ser “gênio”, acredita realmente que isto é ótimo, maravilhoso, a ponto de intensificar ainda mais seu trabalho. No meio deste bojo até o seu lazer é tomado. O professor se vê tão envolvido neste processo, que faz isso porque acredita que esta é a única e melhor forma de se destacar na carreira e conseguir recursos para pesquisa, expressando sua capacidade e adquirindo um status diferenciado em sua categoria. Com o tempo, a exaustão emocional e o cansaço, entre outras contradições, vão fazendo com que este docente apresente sofrimento e se não possuir estrutura emocional adequada adoece sem se perceber. Esse que é o maior problema. O docente não tem consciência do seu processo de adoecimento. É preciso criar políticas que façam o professor perceber que está dentro de uma rede perversa e que isso poderá levá-lo a adquirir doenças psicossomáticas, depressão, Síndrome de burnout entre outras.

Não se iludam, todas essas políticas criadas pelo MEC tem um viés de controle. Por exemplo, quando se impõe uma avaliação quatitativista aos docentes, com uma série de requisitos e pontuações que devem ser preenchidas, isso faz parte de uma política de controle. A Lei de Inovação Tecnológica é outra questão perigosíssima, pois ela incentiva o professor a ser além de produtivista, empreendedor. Essa Lei direciona a pesquisa aos interesses mercantis, sujeitando os docentes a pesquisarem de acordo com o retorno que os resultados da pesquisa darão ao mercado, às empresas e/ou indústria; além disso, outras áreas que não estão ligadas aos interesses industriais e de mercado, são penalizadas, dificilmente tem seus projetos aprovados porque não são “rentáveis”. Aquilo que existia nas universidades em termos da autonomia não existe mais. Tornou-se o que nós chamamos de ‘autonomia consentida’. Você vai até onde a instituição acha que é permitido ir. O próprio docente está comprometido em sua autonomia intelectual, ou seja, ele não tem mais a liberdade de pesquisar o que ele julga e percebe ser importante para a sociedade e para a universidade. Ele tem que pesquisar aquilo que é considerado valido e que dará retorno, no sentido de recompensar monetariamente. Ele acredita que está sendo recompensado intelectualmente, mas infelizmente não está.

Adufpa: Quais são as características apresentadas pelos docentes quando atacados em sua saúde mental?

Jadir: Existem várias doenças mentais, porém duas chamam mais a nossa atenção no que tange a saúde do professor, a Síndrome de burnout e a depressão. A Síndrome de burnout, que é intimamente relacionada ao exercício docente e a depressão, que hoje é a segunda causa que mais afasta do trabalho e, em 2020, será a doença que mais afastará do trabalho, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). Hoje, a depressão só perde para LER / DORT, primeira doença que mais afasta trabalhadores de suas atividades.

A pessoa com depressão é aquela pessoa que constantemente se afasta, não tem envolvimento com os colegas, com os pares, procura se isolar. É aquela pessoa que está comumente irritada e não deixa com que ninguém se aproxime ou aborde-a. O cansaço na pessoa que está deprimida é muito frequente, a pessoa sempre relata: “estou cansada”, “estou exausta”, “não consigo produzir o que eu acho que deveria produzir”. Mas, como tem que competir, ela busca de qualquer forma produzir. O docente com quadro depressivo apresenta, constantemente, dor de cabeça e pode apresentar perda do apetite tanto nutricional como sexual.

A Síndrome de burnout tem características especiais. São três as principais características desta Síndrome: a exaustão emocional; a falta de envolvimento com o trabalho, a pessoa perde o interesse e já não tem mais o mesmo entusiasmo de antes; e, finalizando, a despersonalização. A despersonalização, eu considero como médico um termo muito forte, isto é para a escola inglesa, nós, da escola brasileira, chamamos de desumanização. A desumanização se expressa naquele professor que é questionado pelo aluno e responde com pedras na mão e não deixa ninguém sequer intervir, adotando posturas autoritárias: “Aqui o professor sou eu, fique calado”, ou adota posturas similares quando abordado pelas demais pessoas. 

Existem muito mais problemas que comprometem a saúde mental, porém essas duas são as mais expressivas no contexto do adoecimento do docente em função de todas essas mudanças impostas ao mundo do trabalho do professor universitário.

Adufpa: Como ex-coordenador de saúde do trabalhador da UFPA, qual a sua avaliação sobre o papel institucional da universidade para combater esse quadro de elevado adoecimento mental do docente?

Jadir: Quando eu estava na coordenadoria nós fizemos várias discussões sobre o problema do adoecimento de docentes na UFPA. Essas discussões envolveram a Adufpa e o Sindicato dos Técnicos da UFPA (Sindtifes-PA). É lamentável, mas não há realmente um envolvimento Institucional da Administração Superior neste sentido. Não há uma política preocupada com isso. Nós tivemos algumas vezes oportunidade de levar ao atual reitor essas taxas observadas no período de 2006 a 2010. Elaboramos um projeto, o qual está na Pro-Reitoria de Gestão de Desenvolvimento de Pessoal (Progep), que funcionaria como uma intervenção sobre a qualidade de vida do trabalho dos servidores da UFPA. Infelizmente, isso não chegou a ser implantado. Não sei como anda esse projeto atualmente. O projeto foi criado, à época, por mim e pela professora Elen Carvalho, do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA), e está disponível como parte do acervo da Progep. É lamentável que a UFPA não dê a devida importância a um tema como este, pois se preocupar com a qualidade do trabalho deveria ser um hábito Institucional.


Christophe Dejours, que é um autor que pesquisa sobre a questão do sofrimento e adoecimento no trabalho, chama esse processo, vivenciado pelos docentes, de psicodinâmica do trabalho, ou seja, você está envolvido no trabalho, mas não tem consciência do processo e organização dele. O trabalho está posto e você vai realizar. Mas nem sempre consegue. Na maioria das vezes você se aproxima do que lhe foi pedido e cria mecanismos para que não sofra por aquilo. O problema é que hoje, as avaliações estão ai, tudo é avaliado. Não que as avaliações não sejam pertinentes, mas depende do tipo de avaliação, de como essa avaliação é conduzida. Isso é que deve ser discutido. Mas, infelizmente, a UFPA não tem dado importância a este problema, pois eu desconheço, até então, essa preocupação institucional.

FONTE: ADUFPA - SEÇÃO SINDICAL - ANDES SN

segunda-feira, 31 de março de 2014

Chico Anysio conta como venceu a depressão










Psiquiatra e sobrinha do humorista lembra que o tio tratava a doença com naturalidade. “Não escondia isso de ninguém”.


Durante muitos anos, Chico Anysio mostrou ter várias faces. Mas uma, ele só revelou pouco antes de morrer.


“Eu tenho um psiquiatra há 24 anos. E se não fossem os remédios que a psiquiatria dá. Se não fosse isso, eu não teria conseguido fazer 20% do que eu fiz”.

Chico Anysio sofria de depressão.
“Eu entendi que era depressão e eu pude pagar os remédios. E eu pude pagar ao psiquiatra, então eu venci. Porque ela é vencível”, conta o humorista.
O presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria foi quem teve a ideia de entrevistar Chico Anysio. Ele queria que as palavras do humorista fossem usadas em um congresso contra o preconceito a doenças mentais.
“A depressão atinge de 20 a 25% da população. E significa que 20 a 25% da população, tem, teve ou terá um quadro de depressão ao longo da vida. Portanto pode atingir a qualquer pessoa, em qualquer idade”, explica Antonio Geraldo da Silva, presidente da ABP.
A Joseane sofreu calada por quase um ano os efeitos da depressão e do preconceito. “A família não entende. Acha que é frescura. Que é falta de vergonha na cara. Que pobre não pode ter depressão”, diz Joseane Gomes, auxiliar de serviços gerais.
“Só que um dia eu fui para o trabalho e lá eu tive a crise que foi muito forte. Eu chorava muito. Eu sentia uma angustia muito grande. Uma coisa muito forte. Que eu não tinha vontade de nada. De fazer nada. Eu só tinha vontade de morrer. Pra mim, se eu morresse acabava os problemas”, revela Joseane.
Só então a Joseane foi buscar ajuda. E encontrou em uma unidade especializada em saúde mental, da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. “Os pacientes com depressão que chegam aqui. Tem um perfil de uma clientela mais grave. Os pacientes chegam com depressão e com alguns sintomas a mais. Com ideias suicidas, sintomas psicóticos. Estados avançados de inapetência de não querer comer, de se cuidar. Parar de tomar banho. Auto cuidado já mais deteriorado”, explica Christiane Andreolo, psiquiatra.
Segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria, aproximadamente dois terços das pessoas com depressão não fazem tratamento. Entre os pacientes que procuram o médico, apenas 50% são diagnosticados corretamente.
“É a mesma coisa que você falar pra quem usa óculos. Tira o óculos, enxergue, esforce pra enxergar, você vai conseguir. Claro que não vai conseguir. A depressão também você não vai conseguir sair dela”, afirma Antonio Geraldo da Silva, presidente da ABP.
“Você se conscientizar que você está com este problema não é fácil. Você acha que os problemas que existem na sua vida que te fazem ficar assim, mas não é, entendeu? Você quando tem depressão, você reage de maneira errada a problemas que todo mundo tem”, explica Paulo Malta Santos, funcionário público.
O Paulo só começou o tratamento depois de muita insistência da família. “As pessoas tendem a confundir com como se fosse um tipo de loucura. Muita gente têm até vergonha de procurar ajuda. Mas não é loucura. É um problema psíquico de fundo emocional que hoje em dia muita gente tem”, diz Paulo.
“O difícil é as pessoas entenderem como é que pessoas aparentemente normais podem sofrer de depressão. Aí, tem um outro tipo de preconceito que achar que depressão inutiliza as pessoas e elas são malucas”, explica a psiquiatra Ana Alice.
Ana Alice é psiquiatra e sobrinha de Chico Anysio. E lembra que o tio tratava a doença com naturalidade. “Meu tio não escondia isso de ninguém. Nunca escondeu. Falou pra família inteira. Conversava comigo. Muito natural”, revela Ana Alice.
“Ontem eu tava conversando com uma paciente minha sobre ‘por que é que eu tenho depressão? Será que foi porque eu não consegui lidar com tal situação. Eu sou frágil por causa disso?’ Depressão é uma doença genética. Hereditária. Mas ninguém fica deprimido porque quer”, explica a sobrinha de Chico Anysio.
Rico sabe sobre o que Ana Alice está dizendo. Ele é primo dela e filho de Chico Anysio. “Eu já deprimi quando minha mãe morreu. Quando ele morreu eu fiquei também deprimido. Não tive que tomar remédio nenhum. Eu faço terapia e não tive que me medicar. Mas certamente eu fiquei deprimido”, conta Rico.
Ao falar abertamente sobre o problema, o filho parece ter entendido o último conselho do pai.
“Quanto mais pessoas me ouvirem falar sobre a depressão, mais pessoas vão deixar de ter vergonha de ser deprimido”, disse Chico Anysio.
FONTE: globo.com/fantástico

Veja Vídeo Com  a Entrevista: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/03/em-depoimento-inedito-chico-anysio-conta-como-venceu-depressao.html

quarta-feira, 19 de março de 2014

Escutem o louco














O homem que empurrou uma passageira nos trilhos do metrô desnuda o momento perturbador vivido pelo Brasil

De repente, o taxista aumentou o som da pequena TV acoplada no console do carro. No banco de trás, eu parei de ler e afinei os ouvidos. Era meio-dia da sexta-feira de Carnaval (28/2). O homem que, dias antes, havia empurrado uma passageira nos trilhos do metrô de São Paulo tinha sido preso. A mulher teve o braço amputado. O agressor sofre de esquizofrenia, destacou o apresentador de TV. “Louco”, decodificou de imediato o taxista. Doença triste, disse o apresentador na TV. Ao ser preso, continuou o apresentador, o agressor afirmou que a empurrou porque sentiu raiva. Essa parte o taxista não escutou. Algo lá fora o havia perturbado. Colou a mão na buzina, abriu a janela do carro e xingou o motorista ao lado, que tentava mudar de pista. Perdigotos saltavam da sua boca enquanto ele empunhava o dedo médio com uma mão que deveria estar no volante. Fechou a janela, para não perder a temperatura do ar-condicionado, e voltou a falar comigo. “A polícia tem de tirar os loucos da rua”. A quem ele se refere, pensei eu, confusa, olhando para fora, para dentro. Era ao louco do metrô.

Há algo de trágico nos loucos. E não apenas o que é definido como loucura nessa época histórica. Há outra tragédia, que é a de não ser escutado. Sempre que alguém com um diagnóstico de doença mental comete um crime, a patologia é usada para anular as interrogações e esvaziar o discurso de sentido. A pessoa não é mais uma pessoa, com história e circunstâncias, na qual a doença é uma circunstância e uma parte da história, jamais o todo. A pessoa deixa de ser uma pessoa para ser uma doença. Se há um histórico, é o de sua ficha médica, marcada por internações e medicamentos – ou a falta de um e de outro. Esvaziada de sua humanidade, o que diz é automaticamente descartado como sem substância. A doença mental, ao substituir a pessoa, explica também o crime. E, se não há sujeito, não é preciso nem pensar sobre os significados do crime, nem sobre o que diz aquele que o cometeu.

Mas o que essa escolha – a de reduzir uma pessoa a uma patologia e a de anular os sentidos do seu discurso – diz da sociedade na qual foi forjado esse modo de olhar? Se Alessandro de Souza Xavier, 33 anos, o homem que na terça-feira (25/2) empurrou Maria da Conceição Oliveira, 28, no metrô, for escutado, há algo de particularmente perturbador na justificativa que confere ao seu ato. Alessandro diz: “Fizeram um mal pra mim, e eu descontei. Fiz porque estava nervoso com o pessoal do mundo.”

O louco não expressa apenas a sua loucura. 
Ele também denuncia a insanidade
 da sociedade em que vive

O que há de particularmente perturbador nessa fala é que, quando escutada, ela desnuda o atual momento do Brasil. Vale a pena lembrar que o louco é também aquele que diz explicitamente do seu mundo. Sem mediações, ao dizê-lo ele pode sacrificar a vida de outros, assim como a sua. Vale a pena lembrar ainda que o louco não expressa apenas a sua loucura. Ele denuncia também a insanidade da sociedade em que vive.

Ao interrogar sobre os sentidos do que Alessandro diz, quando explica por que empurrou Maria, é necessário olhar para os outros crimes que viraram notícia nos últimos dias. Nenhum deles, até agora, relacionado a doenças mentais. Torcedores do São Paulo bateram com barras de ferro em um torcedor do Santos que esperava o ônibus. Bateram nele até matá-lo. Ao deparar-se com blocos de Carnaval interrompendo o trânsito, na Vila Madalena, bairro de classe média de São Paulo, um homem acelerou o carro e feriu dez pessoas. Quem estava perto o arrancou do veículo e passou a agredi-lo. Quando ele conseguiu fugir, destruíram o carro. Um casal de lésbicas foi espancado ao sair de um bloco de Carnaval, no Rio. Uma delas teve a roupa arrancada. Apenas uma pessoa na multidão ao redor tentou ajudá-las. Em Franca, no interior de São Paulo, um adolescente correu atrás de um suspeito de assalto e lhe aplicou um golpe chamado de “mata-leão” (estrangulamento). O suspeito, de 22 anos, teve um infarto após ser imobilizado e morreu no hospital. Um morador de rua foi linchado em Sorocaba (SP) por ter pegado um xampu de um supermercado. Teve afundamento do crânio. No Rio, mais um adolescente foi amarrado e agredido depois de furtar um celular. Linchamentos eclodiram em todo o país depois do caso do garoto acorrentado com uma trava de bicicleta no Flamengo. Nas semanas anteriores, dois manifestantes acenderam um rojão num protesto no Rio, matando um cinegrafista. Na Baixada Fluminense, um homem executou um suspeito de assalto com três tiros, em plena rua, durante o dia, assistido por vários. Mais de 40 ônibus foram incendiados em São Paulo em 2014.

A lucidez do louco é a de não vestir
 como razão a nudez do seu ódio – 
ou do seu medo

O discurso do louco é encarado como uma afirmação (e confirmação) da sua loucura, o que é outra forma de não escutá-lo. No caso de Alessandro, uma das provas da loucura do louco teria sido ele dizer que jogou Maria nos trilhos do metrô por raiva e também por vingança. Explícito assim. Outra prova da loucura do louco revelou-se ao afirmar que não a conhecia, que a escolheu de forma aleatória. “Desconexo” – foi o adjetivo usado para definir o discurso de Alessandro. Sua vítima não era torcedora do Santos, não era lésbica, não tinha furtado um celular ou um xampu, as desrazões interpretadas como razões. Por que, então? O louco confessou: Maria não era Maria, já que não a conhecia nem sabia o seu nome, mas o “pessoal do mundo”. A lucidez do louco talvez seja a de não vestir como razão a nudez do seu ódio – ou a nudez do seu medo. Por isso também é louco.

Diante da violência que irrompe no Brasil em todos os espaços, talvez seja a hora de escutar o louco. Talvez o fato de ele atacar no metrô não seja um detalhe descartável, uma coincidência destituída de significado. No mesmo dia em que Alessandro foi preso, morreu no hospital Nivanilde de Silva Souza, aos 38 anos. No mesmo dia em que, na Estação da Sé, Alessandro empurrou Maria, na Estação da Luz um trem atingiu a cabeça de Nivanilde. Ela tinha dito a um estagiário da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) que estava grávida, o que lhe assegurava o direito a entrar no vagão especial. O estagiário disse a ela que teria de apresentar um documento comprovando a gestação. Os dois teriam se empurrado, seguranças deram voz de prisão à Nivanilde. Na confusão, ela teria caído na plataforma. O trem bateu na sua cabeça.

No início de fevereiro, a linha-3 vermelha do metrô parou por cinco horas depois da falha em uma porta na estação da Sé, a mesma em que Alessandro empurrou Maria. No verão paulistano mais quente desde 1943, o ar-condicionado foi desligado. Pessoas vagavam pelos túneis, algumas desmaiaram, grávidas e velhos esperaram dentro de vagões abafados por horas. Pelo menos 19 dos 40 trens que circulavam na linha foram depredados.

O outro, qualquer outro, tornou-se inimigo
e competidor por um lugar no trem que 
nos engole e nos cospe em
 seu vaivém automático

Os protestos de junho de 2013 começaram por causa das tarifas do transporte público, em São Paulo os 20 centavos de aumento da passagem. Naquele momento, milhares romperam o imobilismo, no concreto e no simbólico, e passaram a andar por cidades em que não se andava, vidas consumidas em ônibus e metrôs superlotados. O aumento de 20 centavos foi cancelado, mas o péssimo transporte público continuou mastigando o tempo, desumanizando gente. Basta parar para esperar o trem nos horários de pico para ser empurrado, xingado, odiado. O outro, qualquer outro, tornou-se nosso inimigo e nosso competidor por um lugar no trem que nos engole e nos cospe em seu vaivém automático. Somos passageiros que não passam, e a tensão dessa impossibilidade cotidiana pode ser apalpada. A violência é gestada como uma promessa para o segundo seguinte.

Então o louco vai lá e empurra a mulher sobre os trilhos. Rompe o imobilismo e empurra aquela que espera. Porque é louco. Caso isolado, nenhuma conexão com nada, desconexo é o seu discurso, fora da história é o seu gesto, a insanidade é só dele. Basta eliminá-lo, tirá-lo de circulação, para que a sociedade brasileira volte a ser sã. E o metrô de São Paulo um espaço de convivência agradável e pacífico, marcado pela cordialidade.

Talvez estejamos todos não loucos, mas no lugar do louco. Já não nos subjetivamos, tudo é literal. Nos mínimos atos do cotidiano nos falta a palavra que pode mediar a ação, interromper o gesto de violência antes que se complete. Mas talvez estejamos no lugar do louco especialmente porque nem escutamos, nem somos escutados. E quem não é escutado vai perdendo a capacidade de dizer. Só resta então a violência.

Reprimir os protestos é uma forma brutal
 de não escutar o que dizem aqueles
 que ainda se preocupam em dizer

Os protestos iniciados em junho pelos 20 centavos e agora centrados na Copa do Mundo são um dizer. Responder a eles com repressão – seja da polícia no espaço público, seja em projetos de lei que transformam manifestantes em terroristas, seja anunciando que o Exército vai para as ruas em tempos de democracia – é uma forma brutal de não escutar aqueles que ainda se preocupam em dizer. É talvez a maior violência de todas.

É preciso ser muito surdo para acreditar que prender todos, “deter para averiguação”, criminalizar manifestantes é suficiente para voltarmos a ser o Brasil cordial e contente que nunca existiu, 200 milhões em ação torcendo pela seleção canarinha. Que o dizer de quem deseja um Brasil diferente seja hoje expressado no campo simbólico do futebol é mais uma razão para escutá-lo, ao mostrar que estamos diante de novas construções do imaginário.

Escutem o louco. Para não colocar aqueles que protestam no lugar do louco, no lugar daquele que não é escutado porque não teria nada a dizer. E depois surpreenderem-se com a resposta violenta, convencendo-se de que não têm nada a ver com isso.

FONTE: BRASIL EL PAÍS / Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. 

Como se fabricam crianças loucas














Os manicômios não são passado, são presente. Uma pesquisa realizada no hospital psiquiátrico Pinel, em São Paulo, mostra que, mesmo depois das novas diretrizes da política de saúde mental no Brasil, crianças e adolescentes continuaram a ser trancados por longos períodos, muitas vezes sem diagnóstico que justificasse a internação, a mando da Justiça. Conheça a história de Raquel: 1807 dias de confinamento. E de José: 1271 dias de segregação. Ambos tiveram sua loucura fabricada na primeira década deste século

Em uma noite de novembro de 2007, a psicóloga Flávia Blikstein escutou de uma menina duas perguntas. E descobriu que não tinha respostas. Flávia trabalhava num Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) infantil, em São Paulo, e encontrava-se na ambulância para levar a garota para sua primeira internação psiquiátrica. Maria, como aqui será chamada, tinha 14 anos. Era negra, alta e magra. Falava pouco, frases curtas. Gostava de brincar de boneca e de desenhar. Às vezes pintava as unhas, arrumava o cabelo, anunciando a adolescência. Maria se molhava o tempo todo, em pequenos rituais. Abria a torneira, fazia uma conchinha com as mãos e molhava os pés, as pernas, os braços. Fazia isso em qualquer lugar, causando vergonha à mãe. Talvez Maria estivesse esculpindo com a água os limites do próprio corpo. 

Quando fez a primeira pergunta à Flávia, ela ainda tinha as pontas dos dedos úmidas, e o seu olhar também era molhado:

- Por que eu vou ficar aqui?
Flávia descobriu que não tinha resposta.
Maria fez então a segunda pergunta:
- Quem tá aí? Quem vai dormir no quarto comigo?

Flávia descobriu que não tinha resposta também para essa. Não tinha resposta porque, ao contrário do que costuma acontecer quando crianças e adolescentes nos mostram a face do abismo, ela tinha escutado as perguntas. Escutado mesmo. A “menina louca” tinha indagado sobre a estrutura do Estado e da sociedade que a obrigava a dar o primeiro passo para dentro de uma instituição psiquiátrica. Talvez Maria intuísse que esse passo poderia ser longo. Talvez Maria adivinhasse que os dentes do sistema estavam à sua espera, logo ali.

Flávia abraçou Maria. E pediu desculpas por não saber responder. Maria entrou, carregando olhos molhados e pontos de interrogação.
A “menina louca” tinha indagado sobre a estrutura do Estado e da sociedade que a obrigava a dar o primeiro passo para dentro de uma instituição psiquiátrica

O que Maria perguntou à Flávia, perguntou a todos nós: por que, no século 21, crianças e adolescentes brasileiros, a maioria filhos de famílias pobres, continuam a ter suas vidas mastigadas num hospital psiquiátrico. A “criança louca” fez aos normais a pergunta mais lúcida: por que a condenavam a uma existência de manicômio. A habitar um mundo de dor, vagando entre paredes, desvestindo a si mesma para vestir um uniforme, sem direito ao desejo. Por que lhe negavam a humanidade tão cedo.

Flávia não pôde esquecer as perguntas, menos ainda a sua falta de respostas. Dedicou-se a buscá-las. Encontrou-as no arquivo do Núcleo da Infância e da Adolescência (NIA) do Centro de Atenção Integrada em Saúde Mental (CAISM) Philippe Pinel. O Pinel é uma das instituições de referência para internação de crianças e adolescentes com problemas mentais no estado de São Paulo.

Flávia sabia que aquilo que se costuma chamar de arquivo morto era bem vivo. Então, botou-o para falar. Fechou-se na pequena sala bordada de estantes durante todos os sábados de um ano inteiro. Analisou 451 casos, correspondentes a 611 internações ocorridas entre janeiro de 2005 e dezembro de 2009. Destes, 79% das crianças e adolescentes haviam sido internados apenas uma vez. Os 21% restantes tiveram de duas a sete reinternações. Alguns casos, que continuaram a voltar ao Pinel, ela acompanhou também nos anos de 2010 e 2011. Flávia queria saber qual era o percurso que levava crianças e adolescentes ao hospital psiquiátrico como primeira providência – e não como exceção pontual e por tempo determinado.

O arquivo do Pinel ficava logo abaixo da enfermaria das crianças e adolescentes. Enquanto pesquisava, Flávia podia ouvir os gritos. Percebeu, porém, que mais do que gritos havia um silêncio longo. Um silêncio, nas suas palavras, “estranho e profundo, um silêncio que não imaginamos num lugar cheio de crianças e adolescentes”. Dentro do arquivo, não. Os prontuários contavam histórias. Ainda que a voz de meninos e meninas ressoasse mais nas ausências, nas entrelinhas, os prontuários diziam de infâncias aniquiladas numa vida de manicômio. E mostravam por que caminhos a fabricação de crianças loucas é uma verdade profunda do Brasil. Flávia chamava o arquivo de “sala das almas”. E as almas falavam.

Duas crianças, que se transformaram em adolescentes no hospital psiquiátrico, contaram histórias que poderiam ilustrar livros escabrosos sobre os manicômios do passado, mas que se passaram na primeira década desse século. Aqui, elas serão chamadas de José e de Raquel. José permaneceu confinado por 1271 dias – ou três anos e cinco meses. Raquel, por 1807 dias. Ficou trancada dos 11 aos 16 anos – e de lá foi transferida para outra instituição psiquiátrica. José e Raquel estavam segregados no Pinel, a mando da Justiça, sob reiterados protestos da equipe técnica. Foram depositados como coisas no Pinel porque ainda é este o destino dado a crianças como eles no Brasil.

Por quê?
Flávia sabia que aquilo que se costuma chamar de arquivo morto era bem vivo. Então, botou-o para falar. Analisou 451 casos, correspondentes a 611 internações ocorridas entre janeiro de 2005 e dezembro de 2009

É preciso prestar muita atenção às respostas que Flávia encontrou. Sua escuta de três mil horas dentro do arquivo transformou-se numa dissertação de mestrado em psicologia social na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Somando-se a trabalhos fundamentais de outros pesquisadores do tema, tanto em São Paulo como em vários estados do Brasil, a investigação mostra por que os manicômios persistem apesar das diretrizes da política de saúde mental e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A Lei nº 10.216, de 2001, orientada pela reforma psiquiátrica, prioriza o atendimento em rede, em serviços inseridos na comunidade, perto da família, e determina que a internação só pode ocorrer depois de esgotados todos os recursos extra-hospitalares. Não é o que acontece em casos demais.

“Medievais”, “desumanos” e “criminosos”. Essas são algumas das palavras usadas para definir os hospícios desde que a luta antimanicomial se intensificou a partir do final dos anos 1970 e conquistou avanços significativos nesse século. A pesquisa mostra, porém, que mesmo instituições e profissionais que tentam fazer diferente são seguidamente vencidos pelas engrenagens e pela escassez de serviços públicos de base. Na prática, ainda hoje, é de manicômio e de vida manicomial que se trata em uma parte significativa dos casos, uma realidade só possível pelo descaso quase absoluto da sociedade com o destino dessas crianças, em geral filhas de famílias pobres. Ao fazer o arquivo morto falar, Flávia constrói respostas que precisam ser escutadas se quisermos, de fato, estancar o crime de fabricar crianças loucas – e, muitas vezes, também o de conseguir enlouquecê-las.

Raquel nasceu em 1994. A mãe estava presa por tráfico de drogas, não porque era chefe de uma organização criminosa, mas porque vendia uma pequena quantidade para sustentar seu próprio vício. Esse destino é comum nos presídios do país, é também gerador de órfãos de mães vivas. Pobre demais para dar conta dela, a avó colocou Raquel num abrigo aos cinco anos. A menina é de imediato descrita como “agressiva”. E, por esse motivo, é afastada das outras crianças. Passa a morar com o que se chama de “mãe social”, isolada numa casa nos fundos do abrigo. A escolha, como mostra Flávia, evidencia que, desde sempre, a resposta à agressividade de Raquel é a exclusão. Obviamente, também não deu certo. De abrigo em abrigo, Raquel virou aquela que “não dava certo” em abrigo nenhum.

Talvez valesse a pena perguntar se a agressividade, ao se olhar para o contexto e as circunstâncias, não era o principal traço de sanidade de Raquel. Mas o direito à história é o primeiro a ser arrancado das “crianças loucas”. Ela já tinha quase tantos rótulos quanto anos de vida: filha de presidiária, abandonada, agressiva, não dá certo... Raquel só era vista por estigmas e fragmentos.

Ela queria saber qual era o percurso que levava crianças e adolescentes ao hospital psiquiátrico como primeira providência – e não como exceção pontual e por tempo determinado

Negra como Maria, ela foi internada pela primeira vez em 2005, aos 11 anos. Entrou no sistema por ordem da Justiça. Antes de seguirmos o seu destino, é crucial entender as duas formas de entrada nas instituições psiquiátricas, identificadas pela pesquisa. Nelas se encontra uma das chaves para compreender a fabricação das crianças loucas no Brasil atual. Assim como os caminhos pelos quais é mantida viva a função histórica dos manicômios como lugar de segregação daqueles que são decodificados como perigosos para a ordem social, ainda que sejam apenas pobres e abandonados.

Em pouco mais da metade dos casos – 55% – o pedido de internação psiquiátrica foi feito por familiares e por diferentes serviços da rede de saúde. Nos outros 45%, crianças e adolescentes foram internados por ordem judicial. Estes são os dois caminhos de entrada nos hospitais psiquiátricos. A pesquisa mostrou, porém, algumas diferenças fundamentais para compreender o problema: no período pesquisado, a Justiça internou mais cedo, por mais tempo e mais vezes. A maioria dos casos era de adolescentes, mas as crianças respondiam por 20% das internações por ordem judicial. Pela via da rede de saúde, menos de 6% eram crianças. Por ordem judicial, o tempo médio de internação era quase o dobro (55 dias contra 30). A Justiça também foi responsável por 92% das internações com duração maior do que 150 dias. Entre os 14 casos que sofreram internações de quatro a sete vezes, 12 tinham sido confinados por ordem judicial.

Entre eles, Raquel. Dos 11 aos 16 anos, ela foi internada seis vezes no Pinel. A queixa da primeira vez: “Paciente institucionalizada há oito meses (nome de outro hospital), com transtorno de comportamento, heteroagressiva (agressividade dirigida a terceiros), em tratamento ambulatorial pouco resolutivo”. Depois de seis dias, o Pinel deu alta e a menina foi encaminhada a um abrigo. Oito dias mais tarde, ela foi novamente internada por ordem judicial: “Paciente portadora de transtorno de conduta grave. Uma vez no abrigo, voltou a ficar agressiva. Crítica seriamente comprometida, ameaçadora”. Outros 19 dias de internação, e o Pinel pediu à justiça que ela tivesse alta. Passada uma semana, o pedido foi atendido, e ela voltou ao abrigo. Mais três dias e Raquel de novo foi internada no Pinel por ordem judicial: “Ao retornar ao abrigo volta a apresentar quadro importante de liberação de agressividade e falta de controle de impulsos”. Raquel ficou trancada no Pinel por 1004 dias.

Nessas três primeiras vezes, tornou-se evidente que a justiça internava e o hospital liberava, porque não havia razão para manter Raquel confinada. Documentos anexados ao prontuário mostram que a direção da instituição enviou diversos relatórios à justiça, tanto informando da alta médica da paciente quanto pedindo encaminhamento a um abrigo e tratamento ambulatorial. Num dos documentos, a direção afirma: “Nosso hospital está fazendo o papel de Abrigo para esses adolescentes. Sabedores dessa ilegalidade pedimos com urgência uma resolução para esse problema”. E, em outro ofício: “Atualmente a adolescente continua residindo na enfermaria para tratamento de pacientes agudos, encontra-se longe da escola e com enormes prejuízos psicológicos e sociais”.

“Medievais”, “desumanos” e “criminosos”. Essas são algumas das palavras usadas para definir os hospícios desde que a luta antimanicomial se intensificou a partir do final dos anos 1970
A cada três meses, o Pinel mandou ofícios à justiça. Só foi atendido depois de quase dois anos e nove meses. Mas a vida de Raquel fora do hospital durou apenas uma semana. Mais uma vez ela foi internada na instituição. O motivo: “Evolui com episódios recorrentes de agressividade, fugas necessitando atendimento em unidades de emergência. Há dois dias em acompanhamento no CAPS sem aderência ao tratamento”. Depois de mais 413 dias de internação, Raquel fugiu do hospital. Voltou espontaneamente dois dias mais tarde. Para onde mais ela iria, já que o longo período de confinamento esgarçou ainda mais os frágeis vínculos familiares e a impediu de criar novos?

Raquel permaneceu internada mais 244 dias, antes de ser encaminhada a outro abrigo. Quinze dias fora do hospital, e a justiça mandou-a de volta: “Jogou fora seus remédios, quebrou o vidro da brinquedoteca, feriu-se, pegou o telefone para se enforcar e fugiu para uma cidade vizinha dizendo que ia procurar seus avós”.

Na sexta vez, está registrado no prontuário: “A paciente verbaliza que a maior dificuldade que enfrentou no retorno ao abrigo foi uma sensação de inadequação na convivência com adolescentes sem problemas psiquiátricos; infelizmente, criou-se um vínculo inadequado iatrogênico (provocado pela própria prática médica) de segurança com o ambiente de internação, o que se configura como Hospitalismo”.

Em outras palavras. Raquel não sabia mais viver fora do hospital psiquiátrico, seus vínculos estavam dentro da instituição. Se tinha a algum afeto, era ali. Era no hospital que ela sabia como se comportar, identificava uma rotina, fazia amigos entre outras crianças e adolescentes como ela ou realmente doentes. Considerava profissionais de saúde como parentes. E, mais tarde se saberia, quebrava coisas e agredia pessoas quando era mandada para o abrigo porque sabia que assim voltaria àquele que era o único lugar parecido com um lar que tivera na vida.

No total, Raquel ficou trancada no Pinel cinco anos. Sublinha-se: sem necessidade. Sua vida cabe em três caixas do arquivo. Mas esse não foi o fim de sua trajetória manicomial. Em 2010, aos 16 anos, ela foi transferida para outro hospital psiquiátrico
Nessa época, a direção do Pinel mandou mais um ofício à justiça: “Aproveito a oportunidade para dizer da indignação dessa equipe técnica que, por diversas vezes, acionou o judiciário solicitando a desinternação desses adolescentes que, na ocasião, precisavam apenas de um abrigo para moradia e dar continuidade ao atendimento ambulatorial, tendo assim seu direito constituído”.

No total, Raquel ficou trancada no Pinel cinco anos. Sublinha-se: sem necessidade. Sua vida cabe em três caixas do arquivo. Mas esse não foi o fim de sua trajetória manicomial. Em 2010, aos 16 anos, ela foi transferida para outro hospital psiquiátrico.

O diagnóstico que sustentou a condenação de Raquel a uma vida manicomial é bastante revelador: “transtorno de conduta”. Segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID), “os transtornos de conduta são caracterizados por padrões persistentes de conduta dissocial, agressiva ou desafiante. Tal comportamento deve comportar grandes violações das expectativas sociais próprias à idade da criança; deve haver mais do que as travessuras infantis ou a rebeldia do adolescente e se trata de um padrão duradouro de comportamento (seis meses ou mais)”. Essa “patologia”, assim como outras que compõem a CID, é contestada por parte dos psiquiatras, psicanalistas e psicólogos, assim como por profissionais de outros campos do conhecimento. Mas, ainda que se aceite que essa doença de fato existe, o tratamento recomendado é inserção comunitária – e não asilamento.

Em sua investigação, Flávia mostrou que o diagnóstico de “transtorno de conduta” tem sido usado de modo generalizado – e quase displicente – para justificar internações em hospitais psiquiátricos. Tanto na internação pela via da rede de saúde como na internação por ordem judicial, o principal diagnóstico é esquizofrenia. Mas o “transtorno de conduta” tem aumentado. Numa comparação com uma pesquisa anterior, na qual Julia Hatakeyama Joia analisou os prontuários do Pinel entre fevereiro de 2001 e agosto de 2005, Flávia constatou que os chamados “transtornos do comportamento e transtornos emocionais” – dos quais “transtornos de conduta” correspondem a 75% dos casos – cresceram como motivo de confinamento. Em 2002, eram causa de 5,26% das internações. Passaram para 7,14% em 2005. E alcançaram 15,2% das ocorrências em 2009. “Em muitos casos, é diagnosticado em crianças com episódios de descontrole e agressividade, sem que exista uma análise sobre sua história e contexto de vida”, afirma a psicóloga. Outro dado comparativo de extrema relevância é que, entre 2001 e 2004, a proporção de internações no Pinel por ordem judicial era de 23% do total. De 2005 a 2009 saltou para 45%.

Em sua investigação, Flávia mostrou que o diagnóstico de “transtorno de conduta” tem sido usado de modo generalizado – e quase displicente – para justificar internações em hospitais psiquiátricos
O “transtorno de conduta” é bem mais recorrente na internação por ordem judicial do que na internação pela via da rede de saúde. É o diagnóstico de um quarto das internações com duração maior do que 150 dias e por mais de um terço dos casos de crianças e adolescentes internados de quatro a sete vezes. É o rótulo de Raquel – e também o de José. Meninos representam quase 80% das crianças e adolescentes internados, um dado cujas razões precisam ainda ser melhor compreendidas.

José tinha 10 anos quando deu o primeiro passo para dentro do Pinel, por ordem judicial. Tinha passado, segundo o relatório da instituição, por “maus tratos, negligências e privação afetiva”. Apresentou “comportamentos desafiadores e transgressores, o que resultou em rejeição e abandono familiar, principalmente de sua mãe”. A mãe decidiu entregá-lo para o pai, na Bahia. No dia da viagem, José recusou-se a ir. Ele não queria se separar da mãe. Para não ser obrigado a viajar, por duas vezes tentou se jogar diante dos carros, na rua. A “crise de agitação” levou à sua primeira internação. A duração: 623 dias.

Quando teve alta, José foi encaminhado a um abrigo. Permaneceu apenas três dias antes de ser internado novamente. Dessa vez, ficou trancado por 255 dias. José fugiu. Para onde? Para a casa de mãe. Mais uma internação, por “agitação psicomotora com intensa heteroagressividade, baixa tolerância à frustração, sem crítica, e risco de vida”. Dessa vez, ficou 84 dias na instituição antes de fugir novamente. Para onde? Para a casa da mãe. Na quarta e última internação, ele permaneceu 309 dias no Pinel. Foi então encaminhado para um abrigo. De onde fugiu. Para a Bahia, em busca de um lugar e de um afeto.

No total, José ficou 1271 dias trancado no Pinel: três anos e cinco meses. Sobre José e Raquel, a equipe técnica do hospital enviou um ofício à Justiça, em 2008: “(...) Estão em alta médica, mas permanecem nesta enfermaria psiquiátrica para tratamento de pacientes com transtornos mentais agudos, privadas de ter uma vida digna, por não terem retaguarda familiar e não existirem vagas em abrigos”. Sobre esse destino, Flávia afirma: “As internações são motivadas por uma combinação complexa, que resulta numa situação de vulnerabilidade. A resposta da internação psiquiátrica, além de redutora de complexidade, é ela mesma produtora de maior sofrimento. A internação por ordem judicial revela uma concepção sobre a infância e a adolescência pautadas no medo e no perigo. Propõe uma resposta única a todas as situações, sem considerar diferenças, singularidades e contextos. Reduz crianças e adolescentes ao status de paciente psiquiátrico perigoso, produzindo sua cronificação”. É assim que se fabricam crianças loucas.

Vale a pergunta: fugir pode ter sido um ato de sanidade de José, na tentativa de não ser enlouquecido? De algum modo, apesar de tudo e de todos, ele parece acreditar que existe um lugar para ele, um lugar com afeto. José, Raquel e Maria nos mostram que não há desamparo maior do que o de uma criança num manicômio. Ninguém está mais sozinho nesse mundo do que José, Raquel e Maria. Expostos a uma sociedade que, além de não protegê-los, os enlouquece. Eles fogem, como José, eles quebram tudo, como Raquel, eles fazem perguntas, como Maria. Mas estão sozinhos. E cada um de seus atos de resistência é mais um carimbo de sua suposta loucura num arquivo morto.

O desafio exposto pela pesquisa é também o de completar a reforma psiquiátrica no Brasil. Crianças e adolescentes, segundo a legislação, devem ser tratados dentro da comunidade, junto à família, sem afastamento da escola

Ao analisar os prontuários, Flávia conseguiu identificar claramente as diferenças entre a internação via rede de saúde e a internação por ordem judicial. Essas são conclusões cruciais do trabalho, porque apontam o que funciona e o que não funciona, apontam saídas. Na rede de saúde, a maior parte dos encaminhamentos é feita pela emergência de hospitais, o que não é o melhor percurso. Apenas 8% são enviados para internação por Unidades Básicas de Saúde ou por CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) infantil, que deveriam ser a porta de entrada para crianças e adolescentes com sintomas de doenças mentais. Esses dados demostram a falta desses serviços, causando desamparo na população que necessita de assistência pelo SUS. Em vez de começarem o tratamento pela rede básica, inserida na comunidade, o iniciam pelo fim e por aquilo que é uma exceção necessária num mínimo de casos: a internação. A hipótese de Flávia é de que, se houvesse mais serviços comunitários de saúde mental, como está previsto na legislação, é provável que a necessidade de internação fosse bem menor. Em vez do hospital psiquiátrico, uma rede articulada, com investimento maior em equipes de saúde mental, na capacitação e implantação do Programa de Saúde da Família e de centros de atenção psicossocial. “A patologização das crianças em situação de vulnerabilidade social evidencia a precariedade da rede de atenção e cuidado, e também a insuficiente articulação entre as políticas públicas nos campos da educação, saúde, habitação e lazer”, afirma.

A diferença é clara na análise dos dados. Nos casos encaminhados pelos Centros de Atenção Psicossocial, a média de dias de internação é mais baixa do que pelos outros caminhos. Quando crianças e adolescentes são cuidados pelos CAPS depois da alta, apenas 3% são reinternados. “Isso mostra que os serviços comunitários funcionam, mas são em número insuficiente”, afirma Flávia. “Nos pacientes encaminhados pela rede de saúde, o hospital funciona como enfermaria de crise. A maioria é de adolescentes de 15 a 17 anos, em seu primeiro surto psicótico, que são cuidados e liberados. Já na internação por via judicial, o hospital funciona como instituição de asilamento.”

O desafio exposto pela pesquisa é também o de completar a reforma psiquiátrica no Brasil. Crianças e adolescentes, segundo a legislação, devem ser tratados dentro da comunidade, junto à família, sem afastamento da escola. A doença, se de fato existe, deve ser compreendida como uma das várias características – e não como a verdade única sobre aquela criança e adolescente. Mesmo a internação, se for necessária, deve ser entendida como uma parte da história – e não como a história inteira. A internação é um momento, não um destino.

Flávia permanecia das 10h até as 21h de cada sábado na sala das almas do Pinel. Numa noite, estava tão mergulhada nos prontuários que se esqueceu da hora e se atrasou para sair. O guarda do portão recusou-se a deixá-la ir. Eram as regras. Ele não estava ali para pensar sobre elas, mas para cumpri-las. E Flávia soube o que era estar entre muros – e não ser escutada. Depois de um tempo que pareceu largo demais, Flávia conseguiu provar que era uma psicóloga, fazendo um trabalho de pós-graduação para a PUC. Acredita que o fato de ser branca, loira e de olhos azuis possa ter ajudado na sua “soltura”. Mas, ao abrir o portão, o segurança alertou: “Na próxima vez, fica”. Por um momento, trêmula, Flávia teve uma tênue aproximação do que sentiram Raquel, José e Maria, apenas três entre as centenas de “crianças loucas” fabricadas nesse século.

Ao final de sua estadia no arquivo morto que ela descobriu ser vivo, Flávia finalmente tinha as respostas para Maria.

1) Por que eu vou ficar aqui?

- Porque as instituições que compõem a rede de atendimento à criança e ao adolescente trabalham de forma desintegrada e não conseguem atender às suas necessidades.

2) Quem tá aí? Quem vai dormir no quarto comigo?

- As crianças e os adolescentes que tiveram seus destinos produzidos ativamente pela desresponsabilização e pelo abandono.

Maria perguntou. Flávia escutou. Escutou de fato não quando a ouviu, mas quando fez o movimento de buscar as respostas. Elas estão aí, mas só provocarão mudança se o Estado, os governos e a sociedade as escutarem. Se nós as escutarmos. É, afinal, de escuta que se trata.

Flávia desconhece o paradeiro de José. Raquel foi libertada ao completar 18 anos. Mas o que há para Raquel depois do que fizemos com ela? É possível, é moral, é decente dizer à Raquel: vá estudar, vá trabalhar, vá construir uma vida? “É uma marca tão profunda que pessoas como Raquel, mesmo saindo da instituição, continuam institucionalizadas”, diz Flávia. “A institucionalização parece uma grande máquina que suga a potência humana, criando seres humanos sem desejo. A institucionalização é a patologia mais grave da saúde mental.”

Aos 19 anos, Raquel hoje perambula pelas ruas e albergues de São Paulo, ao redor das instituições. Às vezes declara-se “louca” e é internada por curtos períodos. Raquel sempre pergunta pelo seu melhor amigo:

- Onde está José?

FONTE: BRASIL / EL PAÍS / Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista.